Do 20 ao 25: a semana que semeia o amanhã ancestral

Por Thaiane Miranda dos Santos

In: Artigos

“Não morrer nem sempre é viver”. Essa frase de Conceição Evaristo desnuda a experiência cotidiana da população negra brasileira, com singularidades no que se refere às mulheres negras. Estar viva não significa, necessariamente, existir com dignidade, descanso, alegria e liberdade. A pergunta que ecoa é: temos nós o direito à vida plena e ao Bem Viver? É nesse abismo entre a sobrevivência e o sonho que a gente tece uma das mobilizações mais potentes e históricas desse país. Uma luta que não cabe num dia só. Ela pulsa num ritmo ancestral, a partir de reivindicações construídas coletivamente e materializadas do dia 20 ao 25 de Novembro

O 20 de Novembro não é ponto de chegada, é ponto de partida. Data da morte de Zumbi dos Palmares em 1695, o Dia da Consciência Negra é um ato político fundamental do movimento negro brasileiro, constituindo-se como uma contranarrativa histórica ao 13 de maio. O 13 de maio de 1888, data da assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel, é frequentemente apresentado pela historiografia oficial como um ato de benevolência da Coroa, da branquitude, que concedeu a liberdade aos escravizados. Contudo, o movimento negro, notadamente o Grupo Palmares em Porto Alegre, em 1971, e posteriormente o Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, rejeitou essa data por simbolizar uma abolição incompleta e desacompanhada de políticas de reparação e inclusão.

Ao eleger o 20 de Novembro, o movimento resgata a figura de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, o maior e mais duradouro foco de resistência negra no período colonial, para simbolizar a autonomia, a luta e a resistência dos próprios negros pela sua liberdade. Essa mudança de marco temporal e simbólico desloca o foco da “graça” concedida pela elite branca para a ação e o protagonismo negro na história do Brasil, afirmando que a liberdade foi conquistada e defendida com sangue, e não dada. O 20 de Novembro, portanto, é um fundamento que celebra a resistência de Zumbi e Dandara, mas também de milhares de homens e mulheres anônimas que mantiveram vivos os quilombos como projetos de mundo e de Bem Viver. É quando o país reconhece que a liberdade nunca foi concedida: foi tomada, cultivada e defendida pelos povos negros.

As mobilizações anuais do 20 de Novembro surgem de encontros estaduais, reuniões em terreiros, reuniões on-line, rodas nas universidades e debates nas periferias. É uma teia viva que conecta mulheres do Amapá ao Rio Grande do Sul, atravessando sotaques, crenças, territorialidades e estéticas. É no 20 que se reafirma esse chão comum e se prepara o corpo para o que virá. Este amor radical pela negritude, como cunhado por bell hooks, moldou ferramentas de resistência e estratégias de reconhecimento histórico, criadas por intelectuais orgânicos que traduzem a vivência coletiva em conceitos potentes.

Conceição Evaristo, com a escrevivência, articula a escrita localizada nas periferias, com as dores e amores, transformando a experiência coletiva em literatura. Lélia González, com o pretuguês, reconhece a influência de línguas africanas e o papel maternal das mães pretas no período colonial, obrigadas a abdicar da maternidade de seus próprios filhos em prol do cuidado com os filhos dos escravocratas, e afirma a língua como marca de africanidade e identidade. Nego Bispo, com as confluências, privilegia a sabedoria quilombola, em que o encontro de saberes não se anula, mas se expande, em uma perspectiva contracolonial. Tais conceitos, somados aos saberes dos terreiros e da capoeira, funcionam como verdadeiras universidades mostram que o caminho do aprender também é no chão, na vivência.

Apesar de ser a maioria populacional, o povo negro segue como o mais precarizado. As mulheres negras, em particular, recebem quase metade do salário de um homem branco e representam 69,9% das trabalhadoras domésticas e de cuidado. A engrenagem escravocrata nunca foi desmontada; apenas mudou de formas e se sofisticou no neoliberalismo.

No Brasil, a necropolítica, a política de morte do Estado, não é conceito distante: é realidade. As chacinas recentes, como as do Complexo do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro; a do Guarujá, em São Paulo; ou as incursões violentas na Bahia, revelam como o Estado decide, diariamente, quem está autorizado a morrer. E quando filhos, irmãos, vizinhos e parceiros são mortos, o luto do país é sustentado pelas mulheres negras. Um dos movimentos contemporâneos que mais apresentam crescimento são as organizações de mães que perderam familiares vítimas de violência.

Entre a violência do território e a violência institucional, a mulher negra é atravessada por uma dor que é coletiva, política e hereditária. Ainda assim, a resposta é dada com criação e inventividade, articulando conhecimentos ancestrais e de periferia. Como ensina bell hooks, “amar a negritude é um ato de libertação fundamental para a descolonização das nossas mentalidades”.

Para construir com efetividade esse amor, é preciso ter atenção às imagens que são produzidas sobre nós: durante séculos, o olhar colonial desumanizador distorce nossas imagens, produzindo iconografias apresentadas enquanto neutras, legitimando narrativas de violência sobre nossos corpos. Rosana Paulino trás a sutura do passado ao presente como forma de denúncia e composição de novas imagens em busca de rasgar estereótipos e reordenar o imaginário nacional é construir um insurgir com o olhar. 

E assim, guiadas pela memória do 20 de Novembro e pela resistência diária, chega-se ao 25 de Novembro. A Marcha das Mulheres Negras é o desaguar dessas forças: ancestral, popular, coletiva e nacional. Marchamos para denunciar a violência física, econômica, simbólica e estatal. Marchamos pela vida das crianças, pelo fim da necropolítica, pela reparação histórica e pelo Bem Viver. Marchamos porque, embora ainda tentem negar a plenitude, não conseguem impedir a nossa criação.

A Marcha Nacional das Mulheres Negras Contra o Racismo e a Violência e Pelo Bem Viver, realizada em 2015, em Brasília, foi um marco histórico que reuniu mais de 100 mil mulheres negras de todo o país. Essa mobilização massiva foi uma afirmação de um projeto político coletivo, que denunciou a falácia da democracia racial e exigiu reparação histórica e o fim da violência estrutural. O legado de 2015 ressoa como um chamamento para a 2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras, prevista para 2025, que buscará dar fôlego coletivo para a próxima década de lutas, reafirmando a força política e a capacidade de articulação das mulheres negras na construção de um novo pacto civilizatório no Brasil.

O futuro que se busca não é um horizonte distante, mas um ciclo contínuo de luta e celebração. Ele é semeado na consciência do 20 de Novembro, ganha corpo e voz na marcha do 25, e é cultivado no cotidiano de cada mulher negra que, com sua existência, desafia as estruturas de opressão. A jornada é longa, mas o movimento é constante, e o amanhã, que se constrói hoje, é, e sempre será, ancestral.

Thaiane Miranda dos Santos, comunicadora audiovisual e arte-educadora, atua com a fotografia como instrumento de memória, construção de narrativas e afirmação política. Desenvolve práticas pedagógicas e brincadeiras antirracistas como caminho de emancipação e de esperançar para sua quebrada. Também é pesquisadora no campo da história contemporânea afro-brasileira, com enfoque na arte visual produzida por mulheres negras.

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